Para muitos dos que encontram significado na Bíblia, “Judas”, o novo clipe de Lady Gaga, é o cúmulo da ofensa e da blasfêmia. A artista nunca precisou fazer nada além do habitual para se indispor com os cristãos fervorosos: Gaga se veste sem qualquer noção de decoro, estimula os rumores sobre a própria sexualidade, é venerada pelos gays, e tem sua música e sua imagem intrinsecamente ligadas a um estilo de vida livre e, sob certas óticas, promíscuo.
Dessa vez, porém, ela foi um degrau acima de tudo o que havia feito. No clipe da canção, que já é obrigatória em qualquer pista de dança, a cantora se caracteriza como Maria Madalena, a ex-prostituta (até 1969) que é considerada santa por diversas igrejas. Os longos cabelos, com os quais Madalena secou os pés de Jesus Cristo depois de banhá-los, foram incorporados a um visual gótico, com roupas escuras e maquiagem pesada.
A polêmica em torno de “Judas” começou bem antes do lançamento. A antecipação por um clipe de Gaga é normal – tanto que, não raro, a expectativa pela estreia gera um falatório maior do que o próprio vídeo. Dessa vez, porém, o buraco foi mais embaixo.
Judas Iscariotes, o mais emblemático dos apóstolos de Cristo, é creditado pela traição que levou o Nazareno a ser submetido a um ritual de humilhação revoltante. Jesus foi barbaramente chicoteado, teve uma coroa de espinhos fincada na cabeça, arrastou a cruz ao monte Gólgota e foi crucificado entre dois ladrões e indigentes. Ao terceiro dia, ressuscitou e ascendeu, de corpo e espírito, para junto do Pai.
O traidor teria entregado Jesus por 30 moedas de ouro, virtualmente condenando-o, nas mãos do sacerdote Caifás e do governador romano Pilatos, à crucificação. Os motivos para essa atitude divergem nos Evangelhos, de simples avareza à influência direta de Satanás. A canção de Gaga, ao invés de se aproveitar do conceito de Judas – que se tornou sinônimo dos instintos humanos mais reles -, utiliza sua figura. Na letra, Judas é referenciado como um objeto de amor e desejo da cantora.
Gaga em pessoa dirigiu o clipe, com auxílio da coreógrafa e diretora criativa Laurieann Gibson, em que interage com uma versão motoqueira de Jesus, vivido pelo ator Ricky Gonzales (da série “Reaper”), além de Judas, interpretado por Norman Reedus (série “The Walking Dead”), e os apóstolos. O vídeo também está repleto de detalhes religiosos, escondidos ou escancarados.
Em entrevista ao canal E! nesta quinta (5/5), dia do lançamento mundial do clipe, a cantora disse que o vídeo não é um manifesto religioso. “É um manifesto cultural. É uma metáfora, não uma aula bíblica”, ela explicou.
Sobre o sentido da música, ela já tinha dito: “É sobre honrar sua escuridão para que se possa chegar à luz”. Gaga também diz que considera “Judas” uma canção muito divertida para dançar. “Poderia ser uma música de um padre pop”, brinca.
Em tom mais sério e condescendente, a co-diretora Gibson garante que sentiu a presença de um ser superior durante a realização do clipe. “Eu acho que Deus inspirou e se colocou nos corações de todos nós. Acho que Gaga fez algo realmente mágico”, disse.
Pois há muitos que discordam dessa interferência divina. A Liga Católica pelos Direitos Civis e Religiosos dos EUA não está nem um pouco satisfeita com a empreitada. O presidente da Liga, Bill Donahue, divulgou um comunicado no qual se refere ao vídeo como uma “manobra propagandista”.
Para ele, Gaga “está tratando de copiar toda a imagem cristã para apoiar suas atuações mundanas, aborrecidas e sem talento. Há pessoas com talento real e há Lady Gaga. Eu acho Gaga cada vez mais irrelevante. Será que esta é a única forma de ela dar propulsão à sua performance?”, condenou o represente.
O talento discutível da artista, no entanto, não tem valor nessa discussão. Ao partir por esse caminho, os membros da Liga sugerem que a cantora lhes incomoda por motivos que não estejam relacionados com o clipe em questão. Lady Gaga sintetiza em sua persona elementos que a sociedade prefere ignorar, e é natural que aqueles que se fecham dentro de uma única visão de mundo se choquem quando confrontados pelo que antes passava despercebido.
Aí, caberiam as lições de amor e tolerância que Jesus pregou em vida. Alguns, porém, vivem o ano inteiro como se estivessem em uma encenação da Paixão de Cristo: mais voltados para o calvário de Jesus do que para os seus ensinamentos. A agressividade, mais uma vez, não leva a lugar nenhum.
Enquanto os detratores de Gaga esbravejam, os admiradores cantam e dançam.
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